CALÇADA DO LORENA – HISTÓRIA E TECNOLOGIA

Lorena

CALÇADA DO LORENA – HISTÓRIA E TECNOLOGIA

Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos

Desde o descobrimento do Brasil e o início da colonização de seu território sudeste, a Serra do Mar, por sua acidentada topografia, por seus abruptos desníveis entre a Baixada Marinha e o Planalto, e pela grande suscetibilidade de suas encostas a deslizamentos de solos e rochas, apresentou-se como formidável barreira à livre circulação de pessoas e mercadorias entre seu litoral portuário e o interior do país, impondo consideráveis restrições ao desenvolvimento econômico e social da região. Dadas essas características naturais da Serra, invariavelmente as estradas abertas para sua transposição enfrentaram terríveis problemas em sua construção e operação, exigindo um pesado ônus da sociedade para mantê-las, ainda que precariamente, em funcionamento.

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Apenas recentemente a Engenharia Brasileira convenceu-se de que, para superar com sucesso esse desafio de ordem topográfica, geológica e geotécnica, era preciso progredir nos conhecimentos dos fenômenos e comportamentos naturais e induzidos das encostas da Serra. Essa foi uma compreensão importantíssima do problema, pois possibilitou a migração da anterior e desastrosa postura de “vencer a Serra a qualquer custo” para uma atitude mais inteligente e superior de “conhecer e respeitar a Serra”.

Pode-se afirmar que o Novo Caminho de Cubatão, que sucedeu o famoso Caminho do Padre José, inaugurou de fato e de direito o desastroso afrontamento da Serra por uma cultura tecnológica que não possuía experiência nem conhecimentos acumulados na implantação de obras em regiões serranas tropicais, adotando uma atitude que renderia muitos e onerosos desastres no futuro de novas transposições viárias: “vencer a Serra”.

Enfim, as tentativas de transposição da Serra pelos colonizadores foram pontuadas de desastres e insucessos, como bem exemplificam as sucedâneas da pré-colonial Trilha dos Tupiniquins, a qual na verdade constituía um ramal do grande Peabiru indígena que se dirigia às terras incas da Bolívia e do Peru, como o foram o Caminho do Padre José e o Novo Caminho de Cubatão.

 Um bom hiato nessa seqüência de desastres geotécnicos foi representado pela implantação da nova transposição viária Baixada–Planalto, a famosa Calçada do Lorena. Já à segunda metade do séc. XVIII uma série de fatores, mas especialmente as pressões para o estabelecimento de condições do um rápido e seguro transporte do açúcar produzido no interior paulista para os portos da Baixada, tornaram inadiável a abertura de uma nova estrada de ligação entre São Paulo e Cubatão.

Uma casualidade histórica veio permitir que essa nova estrada contasse com um suporte tecnológico de primeiríssima qualidade para a época. Bernardo José de Lorena, então governador da Capitania de São Paulo entre os anos de 1788 e 1798, teve o admirável vislumbre de trazer para a colônia um grupo de oficiais do Real Corpo de Engenheiros de Portugal que acabara de terminar seus trabalhos de reconstrução de Lisboa, parcialmente destruída pelo grande terremoto/maremoto de 1755.

Entre outras missões pela Capitania, Lorena encarregou esses oficiais, comandados pelo engenheiro militar João da Costa Ferreira, de projetar e construir a desejada nova estrada.

Foram então realizados pioneiros levantamentos cartográficos e hidrográficos na região e, após muitas avaliações das experiências anteriores, optou-se por assentar o traçado ao longo da crista de um espigão, evitando-se encostas e vales. O espigão escolhido foi o divisor de águas entre o Rio das Pedras e o Rio Perequê.

A inteligente opção de construir a estrada assentada na crista de um espigão, por constituir essa a situação de maior estabilidade geotécnica entre as diferentes morfologias de relevo da Serra do Mar, e o fato decorrente de exigir uma baixa intervenção no terreno, ou seja, poucos cortes e arrimos, possibilitaram que a Calçada de Lorena desse trânsito seguro a tropas de até 300 mulas por mais de 50 anos, com formidáveis resultados econômicos para a província.

Para uma máxima redução possível da declividade, o traçado foi desenhado em ziguezague, apresentando 180 ângulos (“cotovelos”) da base ao alto da Serra.

Como o projeto previa o transporte por tropas de mulas, foi estabelecida uma largura média de 3 metros, sendo a pista completamente calçada com grandes pedras, provavelmente trazidas de pedreiras de Santos, assentadas sobre uma camada de cerca de 10cm de saibro e pedregulhos. Revelando a excelência dos cuidados técnicos, esse calçamento foi projetado em forma de “V”, para que as águas de chuva corressem sobre as pedras sem risco de erodirem as laterais. Inaugura, assim, a Calçada do Lorena, uma nova atitude para as intervenções na Serra do Mar: entender e respeitar a Serra. Infelizmente essa atitude foi abandonada logo a seguir com as novas e mais modernas estradas de transposição, somente sendo recuperada com a filosofia de projeto adotada pela Rodovia dos Imigrantes no início dos anos 1970.

A Calçada do Lorena é iniciada em 1790 e inaugurada em 1792.

Foto da Calçada do Lorena, tirada após os serviços recentes de recuperação histórica, mostrando o calçamento em pedras e sua sábia “filosofia de projeto”, qual seja, um traçado ziguezagueando a crista de um espigão, evitando as vertentes dos vales, sabidamente mais instáveis. Notar o inteligente expediente técnico de, por geometria em “V”, fazer com que as águas escoassem pelo centro da pista, onde eram colocadas pedras maiores, para evitar a erosão nas bordas terrosas. (Foto EMAE Empresa Metropolitana de Águas e Energia).

Foi pela Calçada do Lorena que D. Pedro I subiu para São Paulo em 7 de setembro de 1822 para proclamar a independência do Brasil.

O relato do historiador Francisco Martins dos Santos revela alguns curiosos hábitos da época:

E por essa nova estrada, em que as tropas transitavam com segurança, em setembro de 1789, Lorena enviava ao Reino, de presente, uma indiazinha apanhada nos sertões de Curitiba, e alguns quadrúpedes e pássaros e várias coisas em três caixotes numerados, entre os quais iam alguns trastes que se achavam no alojamento dos gentios, e três pitos dos antigos paulistas…

O famoso naturalista francês, Auguste de Saint-Hilaire, nos relatos da viagem que empreendeu ao Brasil entre os anos de 1816 e 1822, baseando-se em Kidder e Eschwege, assim registrou suas impressões sobre a Calçada do Lorena:

Nas proximidades do Arraial de Cubatão já se começa a subir a serra. O caminho que leva ao seu cume é solidamente pavimentado, mas estreito, e embora seja todo traçado em curvas de cento e oitenta graus é de tal forma íngreme que só pode ser percorrido por pessoas a pé, cavalos e burros. Ele foi aberto numa espécie de saliência formada pela serra, e de ambos os lados um riacho se precipita numa ravina profunda. Em alguns pontos, ao olharmos para cima, os rochedos que se projetam para a frente, e sobre os quais o caminho faz mil voltas, dão-nos a impressão de uma fortaleza ameaçadora. Olhando para baixo nossa vista se perde em um aterrador abismo… O percurso até seu topo é feito entre uma hora e meia e duas horas.

Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

Autor do livro “A Grande Barreira da Serra do Mar – da Trilha dos Tupiniquins à Rodovia dos Imigrantes”. Editora O Nome da Rosa.

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