Geólogos explicam desabamento de cânion em Capitólio e veem Brasil atrasado em avaliações de segurança de áreas turísticas
País tem até lei para regular monitoramento de sítios de risco, mas vistorias se concentram em trechos urbanos. Na avaliação de especialistas da Unesp, desastre poderia ter sido evitado
Na segunda-feira (10), dois dias após o desabamento de um bloco rochoso nos cânions que circundam o lago de Furnas, no município de Capitólio, em Minas Gerais, matando dez pessoas, o governador do estado, Romeu Zema, participou de uma entrevista coletiva em que tentou explicar o que causou a tragédia. “Foi algo inédito, nunca aconteceu anteriormente”, afirmou. “Nos últimos 100 anos, não sabemos de nenhuma ocorrência dessas. Seria [algo] muito difícil de prever.”
Mas não é o que pensam os especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp. Segundo o presidente da Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo), Fábio Reis, o tombamento de blocos, tal como o que ocorreu em Capitólio, é um processo natural e recorrente. “A gente não consegue saber a hora exata em que algo assim irá ocorrer. Mas é possível constatar se uma rocha como aquela está se movimentando ou se tem risco de se movimentar”, diz. O que possibilita esse conhecimento são tecnologias já disponíveis e consolidadas para a prática do monitoramento geotécnico, somadas à extensa gama de estudos sobre fenômenos que afetam as mais diversas formações rochosas. “Embora o governador tenha falado em acontecimento ‘imprevisível’, isso é superprevisível”, explica Reis, que é docente do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) da Unesp Rio Claro.
Alexandre Perinotto, especialista em Geologia Regional e Geologia Sedimentar e também docente do IGCE-Unesp, explica que o acidente não poderia ser evitado. “Mas o desastre sim”, diz. Ele explica que a definição de desastre implica a ocorrência de um fenômeno natural que causa danos a pessoas. Se a região tivesse sido objeto de um estudo de mapeamento de riscos, seria possível determinar de antemão se havia risco de desabamento iminente, alto, médio ou baixo. Esta avaliação deveria ser usada como base para gerenciar a presença humana na área. Assim, mesmo que o bloco caísse, as pessoas não estariam ali. “O fenômeno natural vai ocorrer, mas será apenas parte da evolução da paisagem, como acontece há bilhões de anos. Mas não teremos um desastre”, diz.
Foto tirada em 2012 mostra que já havia uma fratura visível no cânion que desabou no lago de Furnas. Crédito: Reprodução/Flávio Freitas – Facebook
Desabamento foi causado por fratura na rocha
O tombamento de blocos é um evento bastante comum em cânions, e só não é muito notado pois estas áreas costumam ser menos acessadas por visitantes. Este fenômeno geológico é listado entre os chamados “movimentos gravitacionais de massa”, que também englobam corridas de detritos e deslizamentos de solos e rochas. O tombamento é condicionado pela presença de fraturas nas rochas, que separam os blocos fragilizados do maciço original. Para que um tombamento de tal magnitude ocorra, geralmente a rocha precisa apresentar fraturas verticais e horizontais em estado mais avançado de alargamento.
Essas fraturas, que são descritas como “descontinuidades” ou “trincas”, são parte inerente da formação das rochas. Elas surgem de forma natural e são causadas por processos geológicos específicos, como a movimentação das placas tectônicas. A questão é que, conforme as eras avançam, o tamanho dessas fraturas aumenta devido à exposição aos processos físicos, químicos e biológicos chamados de intemperismos, gerados pelo vento e pelo clima, além das chuvas, secas e cheias das represas que cercam essas rochas. Desta forma, com o aumento das fraturas, também cresce a chance de que os blocos fraturados quebrem e tombem.
No caso do quartzito, a rocha presente em Capitólio, o mais comum é que ocorra uma desagregação de natureza física, pois esse tipo de rocha metamórfica sofre baixo intemperismo químico. A presença da vegetação, algo muito comum nessas áreas, também colabora para a desagregação das rochas, porque as raízes vegetais procuram umidade e espaços, proporcionados pelas fraturas.
No caso da infiltração da água na rocha, ela pode ocorrer vindo de cima, com as chuvas, ou por baixo, originando-se de lagos e represas. A variação do nível de água causada pelas secas e cheias também pode interferir, explica Fábio Reis: “Imagine, quando o nível da água sobe, ela penetra nas fraturas; quando o nível desce, a água sai. Esse carreamento acelera o processo de intemperismo e de alargamento das trincas”.
Até mesmo a ocorrência de ondas nestas áreas pode contribuir com o aumento do espaço das fraturas. “Embora as pessoas imaginem que não existem ondas em reservatórios de lagos e represas, elas são geradas pelo vento e acabam batendo nos paredões ao longo do tempo. Isso ajuda no processo de erosão e no movimento de massas, principalmente em locais que têm suscetibilidade maior.”
Através do monitoramento geotécnico é possível analisar o nível de instabilidade dessas formações, sendo possível constatar se há risco iminente, alto, médio ou baixo de ocorrer algum tombamento. Caso seja observado risco iminente ou alto, os responsáveis procedem para as técnicas de desmonte ou contenção do bloco, a depender do caso. Quando se trata de uma rocha muito grande, como a de Capitólio, recomenda-se desmonte controlado (derrubar o bloco instável) através de técnicas manuais, como alpinismo com vergalhões de ferro, ou com a utilização de explosivos de baixa magnitude.
Em um cenário ideal, as análises de risco são feitas anualmente. O procedimento completo deve se dividir em duas etapas: “O monitoramento geotécnico sempre precisa ser feito antes da época de chuvas, para verificar as áreas que estão em risco e fazer o desmonte ou controle, e depois do encerramento do período chuvoso, durante o qual podem ter ocorrido várias trombas d’água e ondas de cheias na área. Assim, os responsáveis analisam novamente se aqueles locais que foram remediados anteriormente estão ‘ok’ ou se há novas áreas com o risco.”
Monitoramento de riscos se concentra em áreas mais populosas
A prática do monitoramento geotécnico de áreas turísticas é insuficiente em todo o Brasil. Em nosso país, as diretrizes para o mapeamento e a prevenção em áreas de risco são estabelecidas pela Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, instituída pela Lei nº 12.608 de 10 de abril de 2012. Contudo, de acordo com o presidente da Febrageo, a política atual ainda é muito focada nas áreas urbanas, onde o risco é considerado maior por haver nelas uma densidade populacional mais elevada. Isso leva os espaços rurais e turísticos a ficarem sempre em segundo plano, carentes de atenção e de recursos suficientes para que os municípios elaborem ações destinadas ao monitoramento dessas áreas.
O fato é que a população carece de informações confiáveis sobre o real estado de segurança dos locais nos quais está disponível o turismo geológico e de aventura. “A própria política nacional não é clara sobre isso. Falta um mapeamento adequado de risco em milhares de áreas turísticas que são visitadas por incontáveis pessoas no nosso país”, explica Reis.
Ele narra que escapou por pouco de um acidente semelhante ao ocorrido em Capitólio. O episódio se passou na praia próxima ao morro Dois Irmãos, de Fernando de Noronha, em 2007, quando o geólogo estava viajando de férias. Enquanto Reis e seu grupo de turismo estavam dentro do mar, ouviu-se um ruído semelhante a uma explosão, causado pelo desprendimento de vários blocos rochosos do paredão, que caíram na praia e no mar próximo ao litoral. “Se estivéssemos na praia, provavelmente nosso grupo teria sido afetado. Felizmente estava vazia. Foi muita sorte.”
Alexandre Perinotto menciona alguns destinos turísticos populares que mereceriam especial atenção para um monitoramento geotécnico preventivo, considerando a estrutura geológica destes espaços e a recorrente presença de visitantes. A lista inclui o Parque Nacional do Iguaçu, o parque Vila Velha, no Paraná, e as cavernas na região do Vale do Ribeira. (Aliás, no município de Altinópolis (SP), na região de Ribeirão Preto, um desabamento na gruta Duas Bocas, que é fechada ao turismo, resultou na morte de nove bombeiros civis em outubro passado).
Caverna no Vale do Ribeira. Crédito: divulgação
Reis aponta as áreas montanhosas das regiões de Valinhos, Itu e São João da Boa Vista. Ele diz que há “vários pontos ao longo da Serra da Mantiqueira” e nas Serras das Cuestas, que cortam todo o estado, principalmente nas regiões de Botucatu, Franca, São Pedro e Descalvado. Todavia, ambos os estudiosos fazem a ressalva de que, para que seja realizado o monitoramento, sempre devem ser priorizadas as áreas que têm mais pessoas e risco, pois os recursos “não são infinitos.”
Vale ressaltar que o monitoramento e a análise de risco não existem para inibir o turismo ou afastar as pessoas dessas áreas. Pelo contrário, eles fornecem as informações necessárias para que as atividades turísticas, comerciais e culturais sejam desenvolvidas em segurança, restringindo o acesso às áreas em que há risco de desabamento iminente e limitando o número de pessoas permitidas, quando necessário. “Podemos continuar nos aproveitando desses espaços? Sim, basta utilizarmos as técnicas adequadas. Mas é necessário que o poder público, em associação com as empresas envolvidas no turismo, tenha coragem e discernimento para assumir que isso precisa ser feito”, conclui o professor Alexandre Perinotto.
Imagem acima/inicial: militares em frente do ponto ao redor do lago de Furnas em Capitólio (MG) onde aconteceu o desabamento do cânion, matando dez pessoas. Crédito: Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Minas Gerais.
Fonte: Jornal da UNESP