CHÁ DE ANORTITA PURA : um caso patológico, porém cômico.
Bernardo Cristóvão Colombo da Cunha (Viet) –
Geól. turma dez/74 – UnB
Vivíamos o esmorecer da década de 60. Era o emblemático ano de l969, um ano após a inesquecível invasão do restaurante CALABOUÇO, no Rio de Janeiro, em que o jovem estudante-idealista, EDISON LUÍS, tombara ante à bala assassina dos horripilantes fuzis da ditadura militar-facista, cuja dinastia iniciara-se com o golpe militar-fascista de 1964.
Naquela época eu era conhecido pela alcunha de “SOBRINHO DO CAPITÃO”.
Eis que, maranhense, expulso pela fome, pela miséria e pelo impiedoso e despudorado poder das oligarquias dos Sarneys, dos Vitorinos Freire, dos Newton Bellos, dos Bacelares (…) daquele rincão brasileiro, outrora chamado a ATENAS BRASILEIRA, HOJE CHAMADO APENAS BRASILEIRO, aportei, em 1967, em Brasília.
Fui acolhido por um conterrâneo, hoje expressão política importante no Maranhão, o qual, devido à rigidez e formalidade com que se apresentava, recebeu logo o epíteto de CAPITÃO. Como ele é quem me dava o famoso ticket-refeição-de-cada-dia, logo a estudantada, num gesto carinhoso, passou a me chamar SOBRINHO DO CAPITÃO. Ao despejar meus olhares incrédulos sobre Brasília, ficava boquiaberto ao contemplar o verde veludo da grama, a beleza sem par das lâmpadas fluorescentes que se projetavam do solo, como se fossem “pés de luz”, a simetria cartesiana das avenidas, a beleza inescondível dos viadutos. Eu ficava verdadeiramente maravilhado e, dentro de mim , nascia um inexplicável desejo de mergulhar no desconhecido mundo da história. A história que, na crônica do historiador-filósofo EDUARDO GALEANO, […] é um profeta que caminha com o olhar voltado para traz […], foi, para mim, a primeira grande luz, a grande porta da liberdade, o alimento de minha alma.
Foi aí que fui tomando contato com filosofias. Fiquei sabedor da existência do, já conhecido, comunismo, mas também soube do socialismo, bem assim do fascismo. E virei comunista. E virei socialista. E ativista secundarista.
Agora, com o mundo iluminado com diminutos raios de luz da história, comecei a inquietar-me com a ditadura que não me atormentara antes.
Passei a vibrar pela vitória dos vietnamitas: povo pequeno e raquítico como eu, porém, bravo e guerreiro, pois que logrou obter a vitória, lutando contra um monstro ciclópico, o exército norte-americano.
Os vietnamitas ganharam a guerra de guerrilhas. Eu fiz festa. Bebi muita pinga de macumba. Virei, na boca da estudantada, vietnamita. Para os mais chegados, viet. Assim fui para a história.
Deduraram-me ao PAIXÃO [lacaio da ditadura que fiscalizava o restaurante universitário] e tive que fazer os EXAMES DE MADUREZA. Fí-los e, em seguida, o vestibular. Aprovado em segunda opção, estudava na área de Ciências Humanas. Consegui ser transferido para geologia, razão de aconselhamento de amigos. Em primeiro lugar, porque Economia era curso visado [tinha-se que se ler Marx, Engels e tantos outras ilustres figuras da história] .Em segundo lugar, pelo fato do amplo mercado de trabalho.
Aí começou a peregrinação. O nome dos minerais era complicado. O desconhecimento da língua inglesa, para enfrentar as terríveis petrologias [metamórfica e ígnea] e a dureza de alguns honrados mestres me excitava.
A rotina diária de minha vida passou a ter uma expressão dicotômica: trabalhar e estudar, estudar.
Às vezes passava a noite no Tribunal de Contas da União, às vezes na sala do 4º ano, tomando café e reativam e fumando cigarros para não dormir.
Se ia ao cinema [saía, eu e o Riba, de “fininho”, sorrateiro, olhando de soslaio] os colegas de equipe quase me açoitavam: “Vamos estudar, viet, deixa esse negócio de cinema de lado, bicho! Temos que entregar o trabalho e tu ficas sacaneando!…”
Eis que, certo dia, cansado, muito cansado, após uma aula áspera de Geofísica com o ilustre professor Mendiguren, caí, à noite , nos inefáveis braços inerciais da letargia desenergisante do sono e, assim, envolto por esse aconchego vivificante, dormi. E comecei, em meus devaneios inconscientes, a sonhar. Sonhei que meu pai, paradigma do meu eu, ídolo singelo, porém, ídolo, houvera contraído um câncer. Diante do fato tão inusitado, nada poderia ser feito, pois para salvá-lo só mesmo a ingestão de um forte e gostoso CHÁ DE ANORTITA PURA. Desesperei-me, ante tão dura sentença. Tomava uma lâmina delgada e lá identifica um hiperito. Olhava outra lâmina e, então, definia um quartzito. Vi, até mesmo, uma rocha constituída tão-só de sodalita. Naquele sonho desesperador o Mestre FUCK argüia peremptório:
– Tomando-se um sodalitito e o submetendo ao metamorfismo regional do tipo barrowiano, na fácies anfibolito, que produto resultará? Isso eu não sabia; mas isso não me preocupava , pois eu iria consultar o WINKLER ou o MOURHOUSE e descobrir. O que eu queria mesmo era encontrar a ANORTITA PURA! Como encontrá-la? Olhava rochas calcossilicatadas (ou calcissilicáticas?) oriundas de Pilar de Goiás ao microscópio, e só via, na série isomórfica dos plagioclásios, anortita com algum conteúdo de sódio, de acordo com os angulozinhos que eu media com o nicóis do microscópio para determinar o plagioclásio. Era desesperador.
Acordei, após noite de tortura, excitadíssimo. Passei, a partir daí, a pensar no papai. Não mais conseguia dormir. A insônia apoderara-se, indelevelmente, de minhas noites lânguidas e afáveis. A rútila retícula da minha mente opacizara-se: estava com ESTAFA. Fui ao médico; tomei MOGADON; VOLTEI A DORMIR e nunca mais sonhei com o CHÁ DE ANORTITA, graças a Deus. Meu pai, sem jamais ter contraído câncer, vive muito bem [hoje está Lá, dando trabalho para o Criador], saboreando do carinho de minha companheira, Veralúcia, do afeto de minhas três filhas Izaurinha, Ana Amélia e Ana Rita e do apreço de meus colegas da comunidade geocientífica.